domingo, 27 de junho de 2010





Entrevista - Carlos Gracie: O criador de uma dinastia





No início do século XX um antigo campeão de uma desprestigiada arte marcial japonesa aportou em Belém. Lá, teve como um dos seus alunos um menino brigão. Esse garoto indisciplinado era Carlos Gracie, que décadas depois faria a luta, o jiu-jítsu, quase um sinônimo do sobrenome da família. A história de sua vida é contada na biografia Carlos Gracie: O criador de uma dinastia, escrito por sua filha Reila Gracie. Carlos Gracie foi mais do que o precursor e aperfeiçoador da arte marcial no Brasil. Como atleta fez lutas memoráveis, que lotaram ginásios e estádios no Rio, para onde se transferiu com a família. Como professor foi mestre de futuros campeões que revolucionariam o esporte, como o irmão Hélio e o filho Carlson. Carismático, Carlos foi figura constante nos jornais por décadas, seja promovendo combates ou brigando pelo crescimento e profissionalização do jiu-jítsu no país. “O fato de o jiu-jítsu permitir que uma pessoa franzina vencesse outra bem maior e mais forte foi uma novidade que encantou a todos, inclusive aos jornalistas”, conta Reila Gracie. Mas a figura do chefe espiritual do clã Gracie era bem mais complexa. Carlos era paranormal e encarnava espíritos: "Ele não desassociava suas convicções e crenças das suas atividades profissionais e domésticas. Sua liderança lhe conferia poder para traçar os caminhos que o clã deveria seguir." Carlos também desenvolveu a Dieta Gracie, que apontava a combinação exata de tipos de alimentos e os intervalos entre refeições. Mas a vida do clã Gracie sempre rendeu muitas histórias, algumas não explicadas. Do número extenso de filho, 21 só de Carlos, aos casos de adultério dentro da família, e a briga pelo poder dentro do clã Gracie, tudo isso é esmiuçado nesta biografia: "A minimização da importância do meu pai na história do jiu-jítsu Gracie, ou brasileiro, gerou a figura do pitboy, que é uma distorção do sentido da própria arte marcial."



Na parte final da biografia fica claro que um dos motivos que a levaram a pesquisá-la e escrevê-la foi a minimização da importância da figura de Carlos Gracie após a internacionalização do esporte capitaneada por Rórian Gracie, filho de Hélio. Acha que a biografia restituirá o papel de Carlos Gracie na história?



Tenho certeza que sim, e já sinto isso acontecendo dentro e fora do Brasil. Hoje a curiosidade sobre a figura do meu pai é enorme, porque as pessoas já perceberam que existem razões mais profundas e complexas por trás dessa relação visceral que minha família estabeleceu com o jiu-jitsu. Só o conhecimento técnico seria insuficiente para criar uma dinastia de lutadores por um tempo tão longo. Isso só foi possível, porque existia um pensamento filosófico que serviu de base para estimular esse envolvimento que fez do nome Gracie sinônimo do próprio jiu-jitsu brasileiro.

A minimização da importância do meu pai na história do jiu-jitsu Gracie, ou brasileiro, gerou a figura do pitboy, que é uma distorção do sentido da própria arte marcial. Colocar meu pai de volta ao lugar histórico que lhe pertence significa resgatar os valores que fundamentaram a escola que ele criou e que levaram o jiu-jítsu a ficar tão prestigiado e reconhecido como um componente positivo e benéfico para a sociedade.



A transformação do menino brigão e desordeiro, na infância em Belém, no mestre espiritual de um clã faz a história de Carlos Gracie muito peculiar. Foi a filosofia do jiu-jítsu, ensinado a Carlos Gracie pelo japonês Conde Koma, que operou essa mudança na personalidade dele?



O Conde Koma orientou meu pai a usar o jiu-jitsu de forma ética, e o efeito desse conhecimento em seu cotidiano despertou nele uma curiosidade de entender o significado e o potencial que aquela técnica de luta produzia na vida dos homens. Meu pai tinha uma natureza contemplativa e gostava de observar as pessoas, e deve ter assimilado muitas coisas de seu mestre japonês observando seus hábitos e maneira de agir, que se diferenciavam do modo como os brasileiros se comportavam pelo simples fato dele pertencer a uma cultura oriental com forte influencia zen budista. Mas foram as vivências adquiridas a partir desse contato e dos ensinamentos do Conde Koma que lhe permitiram formular uma filosofia de vida própria.



Qual a importância da boa relação com a imprensa para o crescimento do jiu-jítsu nas décadas de 1920, 30 e 40? As lutas anunciadas por matérias de jornais atraiam multidões na época.



O fato de o jiu-jitsu permitir que uma pessoa franzina vencesse outra bem maior e mais forte foi uma novidade que encantou a todos, inclusive aos jornalistas. A mídia sempre teve um poder de mobilização e de atuar como formadora de opinião. Como muitos jornalistas levavam os próprios filhos para aprender jiu-jitsu na Academia Gracie e viam ocorrer neles uma transformação benéfica, é natural que a empolgação com a arte marcial e os lutadores do clã fosse grande. Esse entusiasmo resultava numa abertura de espaço para meu pai divulgar suas idéias e realizações. E como ele era um homem inteligente e carismático, e acreditava profundamente no que dizia e fazia, contagiava as pessoas com sua paixão pelo jiu-jitsu. Grandes jornalistas escreveram sobre os Gracie e sobre as lutas que realizavam, inclusive Nelson Rodrigues e Davi Nasser, na década de 1950.



O livro cita que muitas personalidades tiveram ligação com o clã Gracie ao longo das décadas. De Roberto Marinho a Leonel Brizola, passando por Carlos Lacerda e Tenório Cavalcanti. Alguma história envolvendo pessoas públicas não foi contada na biografia?



O círculo de relações da minha família sempre foi muito grande. Muitas personalidades notórias passaram pela Academia Gracie, e outras tantas procuraram meu pai em busca de tratamento por meio de sua dieta. Para o livro não ficar muito extenso, optei por citar apenas os episódios relevantes na construção do perfil psicológico e da obra de meu pai, e alguns outros que foram publicados na imprensa. Quando comecei a escrever esse livro quase todos os seus contemporâneos já haviam falecido. Tentei entrevistar o Roberto Marinho, mas ele já estava bem idoso e não se dispôs a me conceder entrevista.





A biografia conta histórias pouco divulgadas da vida de Carlos Gracie, como o fato dele ser ligado ao espiritismo e receber um espírito chamado Mestre Lasjovino. Essa parte da história de Carlos é importante apenas na vida pessoal da família ou transbordou também para os tatames?



Tudo o que acontecia com meu pai se refletia diretamente na família. Ele não desassociava suas convicções e crenças das suas atividades profissionais e domésticas. Sua liderança lhe conferia poder para traçar os caminhos que o clã deveria seguir. Em diferentes graus todos foram influenciados por suas crenças místicas e é obvio que isso se refletiu na relação com o jiu-jitsu.



Carlos Gracie também criou a chamada Dieta Gracie. Essa dieta ainda é utilizada pela família? A biografia fala de curas em pacientes que procuravam Carlos depois da medicina tradicional ter fracassado. Os conhecimentos de Carlos já foram estudados postumamente?



Algumas pessoas seguem a tabela de combinações e o intervalo das refeições com mais rigor do que outras, mas o gosto pela alimentação frugal continua vivo na família. O clã cresceu muito e é impossível falar pelo coletivo. Eu particularmente procuro me manter fiel a dieta, até porque quando como besteira meu organismo reage quase automaticamente. Há 26 anos deixei de comer carne vermelha e há seis meses também parei de comer frango. Há muitas fichas e anotações de meu pai sobre pessoas que ele curou com sua dieta alimentar associada às ervas medicinais. E também colhi muitos relatos de antigos clientes dele sobre o processo de cura que sofreram. Pretendo organizar esse material para futuramente transformá-lo em livro, e facilitar assim o acesso de todos a essa fonte maravilhosa de conhecimento.



Acredita que as bases do jiu-jítsu desenvolvidas pelos irmãos Gracie na primeira metade do século XX ainda se mantém no século XXI ou que a luta passou de defesa pessoal “perfeita” a simples esporte, e a conseqüente busca pela competitividade e vitória?



O jiu-jítsu é uma arte marcial em permanente processo de transformação, e é essa essência criativa complexa, que tanto encantou meu pai, que consiste na sua riqueza, beleza e eficiência. Ao adquirir uma federação própria, no início da década de 1970, e ser oficialmente considerado esporte, o jiu-jitsu deu um salto de aprimoramento técnico graças ao talento e criatividade de meu irmão Rolls, que transformou os campeonatos num grande laboratório de experimentação para as inovações técnicas que impetrava na arte marcial. Os gregos não elevaram os atletas ao patamar de semideuses à toa. A busca pela vitória exige do atleta uma permanente busca por auto-superação, e é nas competições o lugar onde eles medem a evolução do conhecimento técnico e da capacidade de concentração que adquirem. E de onde também podem extrair ensinamentos preciosos que lhes servirão para a vida inteira, como por exemplo: lidar publicamente com a vitória e a derrota. Mas tanto no esporte como nas técnicas de defesa pessoal, o jiu-jitsu praticado sem uma filosofia de vida baseada em valores éticos pode se tornar um instrumento perigoso na mão de pessoas irresponsáveis. E a ausência dessa orientação filosófica acaba banalizando o significado do próprio conhecimento técnico.



No livro você descreveu várias lutas do clã Gracie durante quase 80 anos. Qual foi a maior luta que um Gracie já fez? E acredita que há um desenvolvimento progressivo da técnica do Gracie Jiu-jítsu (Carlos, George, Hélio, Carlson, Rolls, Rickson...)?



Acho que algumas lutas foram mais emblemáticas e representativas do que outras, mas todas foram importantes para a construção e manutenção da história coletiva do clã Gracie nos ringues. Durante todo esse percurso histórico, cada lutador deu sua contribuição para aperfeiçoar o jiu-jitsu tecnicamente, mas meu pai, tio Hélio e Rolls deram um salto técnico maior.



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